CRÍTICA AO PL nº 3081/2022
O QUE O PROFISSIONAL REGULAMENTADO VÊ QUE O TIAGO MITRAUD NÃO VÊ
Cameron Magarefe
Bacharel em Arquivologia (ICI-UFBA) e Mestranda em Sociedade e Cultura (IHAC – UFBA)
Sabe-se que existem muitos cargos em empresas e instituições sendo ocupados por trabalhadores com formações alheias aos que as legislações determinam, gerando frustração aos profissionais formados que veem suas vagas sendo cedidas a pessoas que não possuem o conhecimento qualificado que precisou de anos para adquirir. Temos como exemplo, nós, arquivistas, que vemos principalmente Historiadores, Bibliotecários e pessoas sem formação de nível técnico ou superior ocupando cargos que deveriam ser nossos; ou quando empresas procuram nos contratar e oferecem valores bem abaixo do que deveríamos receber.
É-se visível que esta realidade se estende para outros profissionais das mais diversas áreas, mesmo existindo regulamentações profissionais e fiscalização de Conselhos, e este cenário pode piorar ainda mais com a apresentação de um Projeto de Lei que tramita na Câmara dos Deputados que ameaça jogar nossos diplomas, tempo, dinheiro e conhecimentos adquiridos ao lixo.
Apresentado por Tiago Lima Mitraud de Castro Leite – Deputado Federal de Minas Gerais pelo Partido NOVO (2019-2023) –, no dia 22 de Dezembro de 2022, o PL nº 3081/2022 veio com o objetivo de revogar e alterar “leis, decretos-leis e um decreto, a fim de desregulamentar profissões e atividades que não ofereçam risco à segurança, à saúde, à ordem pública, à incolumidade individual e patrimonial” (BRASIL, 2022, p. 1).
O PL elenca 83 legislações de profissões que o Mitraud considera não afetar a sanidade física da população, nem a segurança individual e patrimonial, como Professores, Biólogos, Químicos, Arquivistas, Bibliotecários, Engenheiros, Arquitetos, Psicólogos, Fonoaudiólogos, entre outros (confira a lista completa). Logo, já se é possível perceber uma contraditoriedade em sua pretensão.
Engenheiros, Arquitetos, Arquivistas, Bibliotecários, Museólogos, Biólogos, Físicos, Vigilantes, Aeronautas, entre outros, realmente não afetam a segurança individual e patrimonial em seu fazeres, nem a sanidade física da população?
A justificativa do Projeto de Lei, em resumo, é de que há um prejuízo econômico e que é construída uma “barreira à entrada de novos prestadores de serviços” (BRASIL, 2022, p. 5) diminuindo a competição e aumentando o valor a ser pago aos contratados por uma aparente escassez profissional e que, por isso, as legislações que regulamentam determinadas profissões devem ser revogadas, utilizando como principal e único teórico o Frédéric Bastiat, um economista e jornalista francês liberal do século XIX, por meio da única fonte, o livro teórico “O que se vê e o que não se vê”, publicado em 1849, que analisa os fenômenos econômicos baseados não apenas nas consequências imediatas, mas também as de longo de prazo.
Quando vamos observar as argumentações do próprio partido dedicada ao Bastiat, percebemos o quão contraditória é a utilização deste texto e autor para o que o deputado busca defender, observamos:
Para demonstrar sua teoria, Bastiat usou o famoso exemplo da “Janela Quebrada”, que consiste na falsa ideia de que, ao quebrar uma janela de algum estabelecimento, como, por exemplo, de uma loja, um bem estaria sendo feito à sociedade, pois o incidente geraria empregos aos vidraceiros.
Segundo Bastiat, essa análise é incompleta e errada, pois apenas considera os efeitos imediatos, ou seja, aquilo que “se vê”. Sem dúvidas o vidraceiro se beneficiou do incidente, porém, aquilo que “não se vê” é que o dinheiro gasto para consertar a janela quebrada, poderia ser utilizado para aprimorar a loja com novos produtos, gastos com propaganda, ou reformas realmente necessárias (NOVO, 2022).
Afinal, o Projeto de Lei defende a desregulamentação de mais de 80 profissões, aparentemente sem um real conhecimento dos fazeres cotidianos e das especificações e cuidados necessários para a proteção do próprio profissional e dos usuários do serviço, visando um aumento no lucro econômico (algo imediato), mas não observando os impactos a longo prazo da ausência da necessidade de diplomação e da conclusão dos rituais de reconhecimento profissional, como a aprovação no Exame da OAB para os Advogados.
o que se vê: grupos de profissionais alegando que, dadas as restrições impostas, irão garantir um nível de segurança e qualidade. O que não se vê: uma enorme massa de profissionais qualificados em busca de emprego e dispostos a oferecerem sua mão de obra proibidos de trabalharem por não atenderem aos critérios formais, que na grande maioria das vezes, não possuem correlação com a qualidade do serviço prestado (MITRAUD, 2022, p. 5, grifo nosso).
Quais outros critérios são esses que não estão correlacionados com a qualidade do serviço? O gênero? Dos 12 milhões das pessoas desempregadas no Brasil em 2022, 6,5 milhões são mulheres (ALVARENGA, 2022) e 56,82% das pessoas transgêneras se encontram em situação de insegurança alimentar por estarem desempregadas (BRONZE, 2021); a etnia? Em 2021, dos 13,9 milhões de desempregados, 72,9% eram pessoas pretas (LISBOA; OLIVEIRA; SOUZA, 2021); filhos? São mais de 11 milhões de mães solo desempregadas no Brasil (CALDAS, 2021); ou o passado criminal? Apenas 15% dos ex-presidiários conseguem trabalhar (GUIMARÃES, 2022).
É historicamente vista a gama de mulheres, pessoas trans e pretas que demonstram dificuldade em serem contratadas por menstruarem, terem filhos para cuidar, serem ex-presidiários, ou por causa de seus cabelos crespos, por não serem cisgêneros, ou por, simplesmente, terem a pele preta, ou tudo isso junto. Mas, se não desejam contratar profissionais regulamentados, nem os indivíduos marginalizados, coisa que já ocorre escancaradamente, o que Tiago Mitraud deseja com este PL?
Fomentar uma redução da procura pelo ingresso no Ensino Técnico e Superior nacional? Afinal, qualquer pessoa, com qualquer formação (ou sem formação) poderão ocupar qualquer uma dessas mais de 80 profissões desregulamentadas, se aprovado.
Ou seja, é um projeto que visa única e exclusivamente um lucro financeiro em detrimento do decaimento do nível de escolaridade nacional, que já não é um dos melhores, por o Brasil ocupar o 63º lugar em Educação no quadro global (ALEXANDER BUSH, 2022); além da redução da qualidade dos serviços prestados nas mais diversas áreas técnico-científicas, culturais e artísticas.
O que se vê: um discurso que visa empregar por critérios arbitrários e não pelo conhecimento e qualidade do serviço a ser prestado. O que não se vê: um PL que empreende pelo barateamento dos serviços e uma geração de trabalhadores com prováveis baixos conhecimentos técnico-científicos específicos no exercício das funções em contrato, o que consequentemente pode gerar um impacto na quantidade de pessoas que buscam pelo ingresso no Ensino Superior, afinal, os critérios para contratação podem não requerer uma formação acadêmica, como já ocorre nos dias de hoje com a profissão de arquivista, mesmo sendo regulamentado que Arquivista é aquele que tem formação em curso de nível superior reconhecido em lei (BRASIL, 1978).
Assim, um profissional que atua há décadas na área e tem clientes satisfeitos muitas vezes passa a ter que se submeter a exigências desnecessárias para seguir na legalidade, caso contrário, não pode exercer a atividade. Por outro lado, alguém que apenas cumpra os critérios formais, mas não possui as competências necessárias para o exercício da atividade, poderá ir nesses mesmos clientes e mencionar que, apesar de não ter experiência, legalmente está apto para trabalhar (BRASIL, 2022, p. 5).
Afinal, uma pessoa que exerce seu trabalho num lugar em que não há profissionais qualificados e poucas pessoas com os conhecimentos necessários para perceber os erros/equívocos no exercício das funções de terminadas áreas técnico-científicas tenderá a ser elogiada e a satisfazer os seus clientes. Por outro lado, temos empresas que não apostam fichas nos profissionais recém-formados, não pensam na possibilidade de treinamento de pessoal para a capacitação do seu próprio corpo funcional para que seu serviço seja exercido com a qualidade almejada.
A despeito do exposto, entendemos as preocupações com as atividades cuja má prática possa acarretar em riscos à saúde da população. Logo, as profissões que, de alguma forma, possam afetar a sanidade física dos seus usuários não estão incluídas no texto (BRASIL, 2022, p. 5).
Logo, se um contratado como arquivista disser que não há problema não higienizar os documentos, não fazer uso de EPI’S (luvas, máscara), permitir uso de canetas e a entrada de alimentos e bebidas no espaço dos arquivos, tal ação pode gerar degradação dos documentos, que poderão ser danificados permanentemente como: riscos de caneta, infestação de fungos, insetos, dentre outros. Ou seja, risco ao patrimônio material e aos usuários dos arquivos, pois poderão adquirir diversas doenças, desenvolver alergias, ao entrarem em contato físico com documentos contaminados (risco à sanidade física). Afinal o profissional arquivista está entre os listados dos que não oferecem risco à segurança, saúde, ordem pública, incolumidade individual e patrimonial, sem contar com as atividades que este profissional exerce junto às atividades de controle e segurança de dados visando as condições elencadas na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), ou nas atividades de Digitalização de documentos.
No final das contas, Mitraud lança uma pedra na janela (O PL nº 3081/2022) com o intuito de empregar um vidraceiro (um lucro financeiro), e gasta o dinheiro que poderia ter usado para aprimorar o local com novos produtos, gastos com propaganda e reformas realmente necessárias (novos conhecimentos científicos, tecnologias, mão de obra qualificada e segurança individual, social e patrimonial). O que Bastiat pensaria sobre isso?
REFERÊNCIAS
ALVARENGA, Darlan. G1. Mulheres são a maioria dos desempregados; 45,% das que têm idade de trabalhar estão ocupadas. 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/dia-das-mulheres/noticia/2022/03/08/mulheres-sao-a-maioria-dos-desempregados-457percent-das-que-tem-idade-de-trabalhar-estao-ocupadas.ghtml. Acesso em: 29 dez. 2022.
BRASIL. Decreto 82.590, de 6 de novembro de 1978. Dispõe sobre a regulamentação das profissões de Arquivista e de técnico de Arquivo. Brasília, DF, 1978. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1970-1979/d82590.htm. Acesso em: 29 dez. 2022.
BRASIL. Projeto de Lei nº 3081/2022, que revoga leis, decretos-leis e um decreto, a fim de desregulamentar profissões e atividades que não ofereçam risco à segurança, à saúde, à ordem pública, à incolumidade individual e patrimonial. Brasília, DF. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2345303. Acesso em: 29 dez. 2022.
BRONZE, Giovanna. CNN Brasil. Seis em cada 10 pessoas LGBTQIA+ perderam renda ou emprego na pandemia. 2021. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/business/seis-em-cada-10-pessoas-lgbtqia-perderam-renda-ou-emprego-na-pandemia/. Acesso em: 29 dez. 2022.
BUSH, Alexandder. UOL Notícias. Brasil ocupa último lugar em educação, entre 63 países. 2022. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/deutschewelle/2022/06/29/brasil-ocupa-ultimo-lugar-em-educacao-entre-63-paises.htm. Acesso em: 29 dez. 2022.
CALDAS, Ana Carolina. BRASIL DE FATO. Desemprego, medo e sobrecarga: a realidade de mães solo na pandemia. a realidade de mães solo na pandemia. 2021. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2021/05/01/desemprego-medo-e-sobrecarga-a-realidade-de-maes-solo-na-pandemia. Acesso em: 29 dez. 2022.
GUIMARÃES, Juca. Terra. Apenas 15% dos presos conseguem trabalhar no Brasil. 2022. Disponível em: https://www.terra.com.br/nos/apenas-15-dos-presos-conseguem-trabalhar-no-brasil,b39842b16a67443d7e7fddd3972c48ff1etaxi63.html. Acesso em: 29 dez. 2022.
LISBOA, Ana Paula; OLIVEIRA, Isabela; SOUZA, Talita de. CORREIO BRAZILIENSE. Pretos no topo: desemprego recorde entre negros é resultado de racismo. 2021. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/euestudante/trabalho-e-formacao/2021/03/4913182-pretos-no-topo-desemprego-recorde-entre-negros-e-resultado-de-racismo.html. Acesso em: 29 dez. 2022.
NOVO. Frédéric Bastiat. 2022. Endereço eletrônico. Disponível em: https://novo.org.br/explica/frederic-bastiat. Acesso em: 31 dez. 2022.
Fonte: Cameron Magarefe
Bacharel em Arquivologia (ICI-UFBA) e Mestranda em Sociedade e Cultura (IHAC – UFBA)