A importância dos direitos à memória, verdade histórica e reconciliação
Por Camila Costa e Rodrigo Aldeia Duarte
Ê ê, quando o Sol nascer/ É que eu quero ver quem se lembrará/ Ê ê, quando amanhecer/ É que eu quero ver quem recordará/ Ê ê, não quero esquecer/ Essa legião que se entregou por um novo dia/ Ê eu quero é cantar essa mão tão calejada/ Que nos deu tanta alegria/ E vamos à luta. (Gonzaguinha – Pequena memória para um tempo sem memória)
Reconciliar-se enquanto sociedade é um processo importante após choques e rupturas pelas quais uma sociedade passa. O caso brasileiro não é o único. Países que viveram ditaduras e regimes violentos precisam lidar com seus traumas. Foi assim com a África do Sul e o apartheid, a Alemanha e o nazismo, os países latino-americanos e suas ditaduras, por exemplo. A reconciliação é, portanto, parte dos processos de transição.
Aqueles que discutem a justiça de transição apontam cinco elementos fundamentais. São eles: processar os perpetradores; revelar a verdade sobre os crimes passados; fornecer reparações às vítimas; reformar as instituições perpetradoras de abuso; e estabelecer a reconciliação.
O primeiro deles, o julgamento dos violadores é uma maneira de fazer com que as vítimas sejam reintegradas socialmente e possam reestabelecer a confiança no Poder Judiciário.
Já a verdade precisa ser conhecida pela sociedade e as violações sistemáticas de direitos humanos devem ser reconhecidas como injusta e abusivas pelos diversos atores sociais. Sejam eles cidadãos, governo e até mesmo os próprios perpetradores. Neste sentido, as comissões da verdade auxiliam no processo porque podem tornar públicos os testemunhos das vítimas e desmentir versões oficiais.
As reparações podem ser de caráter simbólico, material ou psicológico. Estas podem ser de diversos tipos como, por exemplo: ajuda material (pagamentos compensatórios, pensões, bolsas de estudos e demais auxílios), assistência psicológica (aconselhamento para lidar com o trauma) e medidas simbólicas (monumentos, memoriais e dias de comemoração nacionais).
As mudanças institucionais são necessárias à justiça de transição porque pode ser difícil ou impossível a determinação de todos os violadores de direitos humanos e estabelecer suas respectivas responsabilidades penais.
Por último, temos a reconciliação. Só é possível uma reconciliação se aplicada verdadeiramente. A ideia de reconciliação não pretende ignorar o passado, provocando o apagamento do sofrimento das vítimas da memória nacional, nem mesmo anular os sofrimentos em nome da construção de uma unidade nacional.
A justiça de transição brasileira inicia-se com a promulgação da Lei 6.683 – conhecida como Lei da Anistia – pelo Presidente (militar) João Batista Figueiredo em agosto de 1979. A Lei 6.683 concedeu anistia aos civis que cometeram crimes políticos e também aos militares. Com a anistia, as violações em massa de direitos humanos durante a ditadura civil-militar brasileira não foram julgadas, ou mesmo amplamente divulgadas no momento do fim do regime.
Já as primeiras medidas de reparação brasileiras foram as comissões implantadas a partir de 1995, a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos (Lei nº 9.140/1995) e a Comissão de Anistia (Lei nº 10.559/2002). A Comissão de Anistia tem por objetivo avaliar os pedidos de reparação que podem ser materiais, simbólicos ou psicológicos. De modo geral, essas comissões promoveram maior número de reparações de ordem material e/ou psicológica. No cenário transicional brasileiro, as reparações simbólicas são bastante recentes e são fortalecidas com a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), – em 2011 por meio da Lei nº 12.528, assinada por Dilma Rousseff – que possuía a (difícil) tarefa de obter a verdade sobre os as violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988. A ideia de obtenção da verdade é também uma maneira de oferecer reparação simbólica, considerando a capacidade de difundir a versão real sobre os fatos ocorridos e reconhecer a condição de vítima e de violador.
No primeiro momento, o Estado brasileiro demorou quase 30 anos após o fim da ditadura para começar a atuar para garantir o direito à memória e à verdade histórica. Certamente, essa demora reflete na percepção da sociedade diante dos acontecimentos passados, e é também de certo modo fruto dessa mesma percepção.
A CNV foi instalada em maio de 2012 e atuou de três modos: pesquisa, contato com a sociedade civil e compromisso com a transparência das atividades executadas por ela. A CNV e a abertura dos arquivos da polícia política estão diretamente vinculados com a concretização do direito à memória e à verdade. Apesar da pouca presença do público em suas audiências, a CNV repercutiu em diversos setores da sociedade brasileira, estimulando ações e estudos com temáticas vinculadas à repressão e às violações massivas de direitos humanos. Até aquele momento, o Estado e a sociedade brasileira haviam deixado o passado violento quase sem discussão, abrindo um vácuo em relação à memória do período. A memória compartilhada pela sociedade ou grupo é um terreno em constante disputa e negociação. Com o grande distanciamento desde o fim da ditadura civil-militar em 1985 e a promulgação da Constituição Cidadã de 1988, percebemos um fortalecimento na disputa por esta memória a partir das ações da CNV.
Adotar políticas de memória específicas para o enfrentamento da herança histórica de violações em massa de direitos humanos deve ter como propósito não apenas a garantia da compreensão dos acontecimentos, mas também reforçar o entendimento da coletividade de que é necessário encontrar mecanismos para o enfrentamento, na atualidade, dos desafios que se colocam frente ao exercício da democracia. É preciso lembrar que quem não enfrenta seus fantasmas segue assombrado por eles.
São muitas questões que ficam para que a sociedade brasileira responda pouco a pouco. Levanto algumas delas. O crime de tortura é perdoável? É possível perdoar aqueles que perpetraram crimes em nome da necessidade de unidade nacional e reconciliação? A punição é a melhor garantia contra futuras violências? Aqueles que cometem violações contra os direitos humanos não se sentiriam dissuadidos de cometer novos atos violentos se soubessem que prestarão conta de seus atos? O que fazer com aqueles que glorificam a ditadura e suas violações? Ao que parece, as iniciativas do Estado brasileiro em obter a reconciliação, utilizando-se de estratégias como a promulgação da Lei de Acesso à Informação e a criação da Comissão Nacional da Verdade fizeram com que os interessados no apagamento da memória e os demais defensores da ditadura saíssem das profundezas. Com o distanciamento temporal, a eles foi possível proferir enunciados raivosos a favor da tortura sem que fossem punidos pela justiça. Exatamente como tem feito o Presidente da República Jair Bolsonaro, ao homenagear Brilhante Ustra, torturador conhecido, e estimular que as forças armadas comemorem o Golpe de 64.
Não era nossa intenção abordar exaustivamente a questão da memória, da justiça e da reparação histórica, mas tecer considerações sobre estas questões e a importância das mesmas para a democracia brasileira. Dada a escalada de violência política em 2018 e as frequentes tentativas de revisar a história recente do Brasil, apagando a ditadura e seus horrores, fica cada vez mais evidente que um país que não resolve seus problemas com a memória das violações em massa de direitos humanos é incapaz de alcançar a reconciliação. Por isso, neste momento vivemos não só o drama de uma nação que não conseguiu enfrentar seu passado de maneira honrosa, mas também o fascismo que tem mostrado sua face violenta e sanguinária, ameaçando minorias e defensores da democracia.
Camila Costa é arquivista, doutoranda em Ciência da Informação e militante da APS.
Rodrigo Aldeia Duarte é historiador, servidor do Arquivo Nacional e doutorando em Ciência da Informação.
*Estas questões foram abordadas também no artigo “Novos golpes, velhas práticas: Direito à informação, memória e reparação” escrito pela autora e publicado no livro “Foi Golpe!: O Brasil de 2016 em análise”.