A Privacidade e a Confidencialidade nos Arquivos: um Diálogo entre a LGPD, Democracia e a atuação do Arquivista

Ao mesmo tempo em que o acesso exagerado à privacidade pode prejudicar o exercício democrático de um Estado, o não acesso extremo também pode; porque é a partir do acesso à privacidade que nós somos identificades e reconhecides [1] enquanto componentes de determinada sociedade; porém o acesso irrestrito à nossa privacidade nos impede de formular as nossas próprias opiniões e visões, sobre o que é bom e o que é ruim. Dessa forma, para os cidadãos, controlar o que e quem se tem acesso é fundamental para o exercício da cidadania [2] e da democracia no Estado.

Heather MacNeil, em seu livro “Sem Consentimento: a ética na divulgação de informações pessoais em arquivos públicos” [3], afirma que dentre as definições de privacidade, a mais útil seria a de Gavison [4], sendo ela “o nível de conhecimento que outros têm sobre nós; o nível de atenção dos outros a nosso respeito; e o nível de acesso físico que os outros têm em relação nós”. Isso nos faz perceber que a privacidade tem a ver com a vida privada, pessoal, sobre o controle em relação ao que os outros podem ter acesso/conhecimento sobre nós, tudo aquilo que tem a ver conosco, com o nosso grupo social, ou com a instituição. Já a confidencialidade é o que, no uso do nosso direito à privacidade, escolhemos por restringir seu acesso.

A partir disso, nós podemos inferir que a privacidade tem dois eixos, o privado de acesso público (eixo público) e o privado de acesso restrito (eixo confidencial).

Mas por que as pessoas precisam desse direito à privacidade? Por que a privacidade é necessária? E por que se tornou um assunto tão discutido atualmente? MacNeil diz que a privacidade é necessária para que possamos formular nossos próprios pensamentos, testar as nossas ideias, desenvolver nossas críticas e ter a nossa própria visão de mundo.

Só a partir da confidencialidade e estipulando limites de acesso ao Estado, à outras pessoas e instituições, que você conseguirá entender e agir no mundo, por consciência e conta própria.

Vejamos o famoso caso da Cambridge Analytica e como o acesso à privacidade (de eixo público) dos usuários do Facebook, que ainda não tinham seus pensamentos formados sobre quem deveriam votar, puderam ser manipulados e favorecer a escolha de um determinado candidato à presidência dos Estados Unidos da América a partir das suas curtidas, comentários e páginas que seguiam [5].

Outro exemplo que podemos dar é o da Sara Winter e a divulgação do hospital e médico que realizou o aborto legal de uma garota de 10 anos de idade, a invasão da privacidade (de eixo confidencial) da garota e a divulgação de informações orgânicas de uma instituição de unidade de saúde, poderia ter prejudicado a operação que aconteceu com sucesso [6].

No final das contas, “a privacidade é importante para a democracia” [7] porque só através da privacidade teremos a possibilidade de formularmos a nossa própria opinião sobre o mundo e nos sentirmos mais seguros sobre aquilo que as pessoas têm conhecimento sobre nós; e que podem atrapalhar ou causar dano à vida de pessoas, sendo isso considerado como “qualquer prejuízo ou constrangimento que tenha efeitos negativos diretos na carreira, na reputação de um indivíduo, na situação financeira, saúde ou bem-estar” [8].

A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), que entrou em vigor no dia 18 de setembro de 2020, acaba adentrando em todas essas questões, afinal fica explícito em seu Artigo 2º que a lei tem como fundamentos:

“I – O respeito à privacidade;

II – A autodeterminação informativa;

III – A liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião;

IV – A inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem;

[…]

VII – Os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais” [9].

E onde entra os arquivistas e os arquivos neste contexto? Em tudo, poderíamos dizer? Iniciemos com o “Código de Ética do Arquivista (CEA)” [10], aprovado no XIII Congresso Internacional de Arquivos, realizado na China, em 1996, que afirma que “Os arquivistas visam encontrar o justo equilíbrio, no quadro da legislação em vigor, entre o direito ao conhecimento e o respeito à vida privada”. O CEA ainda aponta que:

“os arquivistas se preocupam para que a vida das pessoas jurídicas e físicas, assim como a segurança nacional, sejam protegidas, sem que haja necessidade de se destruir as informações, sobretudo no caso dos arquivos informatizados, onde os dados podem ser deletados e novos dados inseridos, como é prática corrente. Os arquivistas defendem o respeito a vida privada das pessoas que estão ligadas à origem ou que são a própria matéria dos documentos, sobretudo daquelas que não foram consultadas quanto à utilização ou ao destino dos documentos.”

Dessa forma conseguimos perceber que o direito à privacidade está imbricado nos afazeres arquivísticos, por estes profissionais tentarem manter o equilíbrio sobre o que é de acesso público e o que é de acesso restrito na vida das pessoas, das instituições e do próprio Estado.

Paralelo à isso temos a atividade da Descrição Arquivística, que sinaliza, mais uma vez, essa proteção de acesso e uso das informações e dados, afinal, na “NOBRADE” tem-se a área de descrição sobre as Condições de Acesso e Uso das instituições, fundos e documentos arquivísticos, em que podemos/devemos fornecer informações sobre restrições de acesso, informando a “norma legal ou administrativa em que se baseia e, se for o caso, o período de duração da restrição” [11]; na obra “e-Arq Brasil”[12], também temos requisitos que tratam sobre controle de acesso e uso de registros, além da necessidade de registrar todos os acessos e delimitar o pessoal autorizado, possibilitando a trilha de auditoria sobre todos os atos que foram exercidos sobre os registros.

Com isso é possível notar que para um bom funcionamento da LGPD, o Arquivista é um dos profissionais chaves para que a democracia seja exercida e que os eixos tanto confidencial quanto público da privacidade dos indivíduos, bem como os fundamentos da lei, sejam respeitados. Possibilitando o nosso desenvolvimento crítico e construção de opiniões próprias sobre as coisas que nos ronda.

NOTAS

[1] Este texto utilizou da linguagem neutra de gênero para a inclusão de pessoas não-binárias no discurso.

[2] Apesar de não haver um consenso sobre o conceito de “cidadania”, entende-se, neste texto, a cidadania como um mecanismo, uma ideia, em que visa dar as mesmas oportunidades, direitos e deveres em uma determinada sociedade aos seus cidadãos, garantindo um distanciamento entre a vida privada e a vida pública; podendo ser considerado também como um direito fundamental (direito humano). Para mais informações, leia TONET, I. Democracia ou liberdade. Maceió: Edufal, 1997.

[3] MACNEIL, Heather. Sem consentimento: a ética na divulgação de informações pessoais em arquivos públicos. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2019.

[4] Ibidem, p. 30.

[5] Para mais informações assista ao documentário “Privacidade Hackeada”, que fala diretamente sobre a Cambridge Analytica e o uso indevido de dados privados de eixo público.

[6] Matéria sobre Sara Winter e os protestantes<https://www.poder360.com.br/midia/sara-winter-organiza-atos-contra-gravida-de-10-anos-vitima-de-estupro/>

[7] MACNEIL, Heather. Sem consentimento: a ética na divulgação de informações pessoais em arquivos públicos. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2019, p. 37.

[8] Ibidem, p. 89.

[9] BRASIL. LEI Nº 13.709, DE 14 DE AGOSTO DE 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm>. Acesso em: 02 nov. 2020.

[10] CONSELHO INTERNACIONAL DE ARQUIVO. Código de Ética para arquivistas. 1996. Disponível em: <https://www.ica.org/sites/default/files/ICA_1996-09-06_code%20of%20ethics_PT.pdf>. Acesso em : 02 nov. 2020.

[11] BRASIL. Conselho Nacional de Arquivos. NOBRADE: Norma Brasileira de Descrição Arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2006.

[12] BRASIL. Câmara Técnica de Documentos Eletrônicos do Conselho Nacional de Arquivos. e-ARQ Brasil: Modelo de Requisitos para Sistemas Informatizados de Gestão Arquivística de Documentos. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2011.

Cameron Santos Coelho – é estudante do curso de Arquivologia do ICI/UFBA e associade AABA.

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